Esta é a 23.ª edição de um festival que teve o seu início há 25 anos, em 1999. A madurez chegou, não só pela excelência da programação e dos prémios internacionais auferidos mas, também, pelo enorme público nacional e internacional que não roga elogios à sua organização.
Sines tem um belo castelo já construído no tempo de D. João I. Em 1423 o povo demanda um castelo para se proteger dos ataques frequentes dos corsários. O pai de Vasco da Gama, Estêvão da Gama, foi alcaide-mor de Sines pelos feitos realizados em Tanger. Foi neste castelo que nasceu o famoso navegador Vasco da Gama em 1469, na Torre de Menagem, bem alta e com vistas desafogadas. Por morte do pai, foi o filho convidado a fazer a mítica viagem da descoberta do caminho marítimo para a Índia.
Sines tem muita cultura e história para ver. Faz questão de mostrar as suas qualidades. A Casa das Artes, o castelo, as ruínas romanas, a Igreja matriz, a avenida marginal Vasco da Gama, onde está localizado outro Festival, o gastronómico das Tasquinhas. Aproveitam, nesta altura, para receber os muitos visitantes que aí se deslocam.
Sines vista a partir do miradouro do castelo.
O estuário em frente, o palco e o castelo misturam-se com a paisagem e o mar. Tornam este ambiente maravilhoso e intimista, principalmente quando visto do miradouro do castelo. O cenário natural para uns dias bem passados e pelas músicas de qualidade que vamos ver por aqui no mundo.
Não é só Festival
É a primeira vez que venho a este festival de música. Já não sou muito de confusões. Num festival que dura oito dias ainda se torna mais complicado. Resolvi experimentar e meter-me na minha carrinha que preparei para estas viagens. Com este tipo de apoio podemos fazer o três em um: férias, festival e trabalho.
A praia dos Buizinhos onde vimos as poças de água deixadas pela maré.
A organização tem algumas ruas dedicadas a artesãos onde estes podem colocar um pano quadrado de metro e meio e envolverem-se gratuitamente no mundo dos negócios. Tudo se encaixava definitivamente e abre um leque enorme de possibilidades, com happenings surpresa de músicos que querem mostrar o seu trabalho nas ruas, entre outros próprios do festival.
Porto Covo
O pôr do sol em Porto Covo é famoso.
Fui buscar a credencial à sede da organização, no Gabinete de Imprensa de Porto Covo. A vila apresentava-se com um colorido muito animado. Não foi fácil estacionar. Todos os lugares estavam tomados e aqueles que apareciam já tinham alguém a guardá-lo. Por fim, lá encontrei uma alma simpática a quem pedi para chegar o carro mais à frente de modo a poder colocar o meu. Um casal da GNR ajudou a orientar o trânsito e,por fim, a arranjar o lugar desejado, mesmo ao pé da praia e a cinco minutos do lugar dos concertos. Em Porto Covo, as entradas são gratuitas. A música é para toda a gente. Muitos espanhóis e brasileiros, alguns italianos e ingleses. Também se viam franceses e o resto eram portugueses. A organização esmerara-se em compor um cartaz de qualidade. Assim se promove um concelho através de boas práticas sociais. Mais de metade dos concertos são gratuitos (61%), dezasseis de cada qualidade. Só os concertos localizados no Castelo de Sines são pagos, e mesmo desses o primeiro é sempre gratuito. Depois para quem gosta existem inúmeras actividades paralelas, umas ligadas ao mar, outras para crianças, outras ainda sobre os bastidores, cabeçudos, gigabombos, orquestras de rua. Tornam esta cidade feliz durante vários dias. Os preços da habitação também subiram e são semelhantes aos de Lisboa. Tudo porque há muito trabalho trazido pela refinaria, o porto e indústrias associadas. O turismo é apenas uma parcela do mundo que Sines envolve.
Porto Covo faz-nos lembrar ilhas com piratas e praias de conchas. Sim, é mais ou menos isso que vamos ver nos próximos três dias de festival a decorrerem aqui. O palco disposto no jardim do INATEL estava preparado para os Expresso Transatlântico. Gaspar Varela dá-se completamente ao instrumento e com ele o público adere. Tocaram maravilhosamente, músicas dos discos já lançadas e outras do álbum a lançar brevemente em Setembro. Parece que não só temos um novo Carlos Paredes mas um que é também roqueiro. Tocou uma obra a solo e foi exímio com o instrumento.
Expresso Transatlântico – Produtores Associados
São uma banda recente mas que tem dado cartas aqui e além mar. A qualidade das suas interpretações estão potenciadas numa formação heterogénea. Os restantes músicos são: na bateria Rafael Matos, guitarras Sebastião Varela, trompete e teclados Zé Cruz e baixo o Tiago Martins.
O ambiente estava preparado para a entrada de Silvana Estrada do México. A sua voz ainda ecoa nas ondas do ar. É de um romantismo a toda a prova, muito intimista. Uma voz potente e melodiosa que nos abraça no seu combalido pessoal.
A artista seguinte foi Eneida Marta da Guiné Bissau. Veio mudar o tom para uma movida bem mais acentuada. Eleita embaixadora humanitária pela UNICEF. Esteve no palco a mostrar o que têm sido os seus últimos 20 anos de carreira. Uma canção de luta pelos direitos das mulheres, pela emancipação do seu povo, várias vezes roubado pelas grandes potências estrangeiras. Um apelo aos políticos de África sempre de orelhas moucas. O problema de África reside na esperança, na felicidade, no poder de irmanar os povos para vencerem as duras lutas que têm entre mãos. Uma banda muito coesa e de grande qualidade nas teclas Miguel Tapadas, na guitarra Bidan, no baixo Hugo Ali e na bateria Marcos Alves.
Segundo dia atípico
O segundo dia começa com Leenalchi. É um banda oriunda da Coreia do Sul. É atípico porque não entendemos o que dizem. Um rock meio poético cheio de sons e expressões sonoras que falam de coelhinhos e de uma riqueza especial. São vários cantores ao mesmo tempo a cantar. Isto cria diferentes tessituras que se sobrepõem ao originar um ambiente sonoro muito especial. Próximo de retro punk sinfónico com dois baixos, um baterista e um teclado que se vai revezando à vez. «Cantam uma das cinco histórias que sobrevivem da tradição pansori, “Sugungga”, sobre um rei-dragão, uma tartaruga de carapaça mole e um coelho astuto.»
Os La Chica são uma venezuela e um francês tocador de piano e samplers. Sophie Fustec é uma performer de excelência, usa os seus dotes vocais para transformar um espaço num imenso enquadramento poético de grande poder. «La lluvia cae poderosa» repete-se debaixo de sons aquáticos e do piano de Raphael Charpantier que a acompanha. O sítio da formosa loba pode ser encontrado na legenda.
Por fim, Lass do Senegal trouxe-nos, para além dos ritmos africanos bem sincopados, uma alegria e um prazer pela festa. Segue na continuidade de Orchestra Babab e Super Diamono, ele apresentou o seu primeiro álbum Bumayé sempre com o coração em África. Reside em Lyon e a saída do Senegal para França levou-o a desenvolver projectos na área musical.
Ao terceiro dia
Aproveitamos para vermos como funcionavam as actividades paralelas. Fomos numa visita à praia dos Buizinhos levados pelo Centro Maré, com os biólogos João e Joana. Os presentes foram divididos em dois grupos. Fiquei no do João que foi exímio em explicar tanto a adultos, crianças e outros biólogos interessados as subtilezas do fundo do mar. Apesar da maré estar a encher explicou-nos que o fundo do mar não tem de ser profundo. Há as entre-marés onde uma grande quantidade de vida marinha pode ser apreciada.. Foi bastante profundo, ao ponto de nos explicar a diferença entre seres com cabeça e seres sem cabeça com simetria radial como os ouriços e estrelas do mar. Tudo tem a ver com a busca de comida. Ficámos deliciados com o que se consegue ver numa pequena poça de água marinha. Algas, líquenes, fungos, caranguejos, lapas, ouriços, percebes, etc. Um mundo que balança para sobreviver.
Sessão Maré na Praia dos Buizinhos.
Ao terceiro dia, apareceu Mari Kalkun. Uma cantora vinda da Estónia que produz sons à base de loops, a sua harpa étnica feita guitarra e sonoridades profundas que se entranham. De um país gelado com grande calor humano. Faz lembrar Enya e os cantos dos índios das neves, algures entre o gutural e o mundo sensível e transcendental. Foram momentos de grande interacção com o público que adorou e repetiu os seus sons várias vezes e de várias maneiras.
O seguinte foi Chico César. Traz o Brasil às costas com uma sonoridade solta e moderna. Uma banda bem montada, duas mulheres exímias no baixo e na bateria, muito ao jus das parties que vão pela noite dentro sem cansar. O «Vou vestido de amor» convenceu a assistência que acompanhou e bisou na vontade de dançar.
A noite só terminaria com Brama. um trio vindo da Occitânia, França. Um som contagiante de fazer rebolar cabeças e pés até à exaustão. Para o fim de uma noite fria os pratos foram bem servidos. A alegria contagiou e ninguém ficou indiferente.
Uma Maré feita Orquestra
A Orquestra da Maré do Amanhã é um grupo formado por crianças e jovens. Foi fundado pelo Maestro Armando Prazeres e vem direitinho do Complexo de Favelas da Maré do Rio de Janeiro. Uma das zonas mais violentas do crime no Brasil. O filho veio expressamente do Brasil para homenagear o pai que era português e fora assassinado precisamente naquele local. O pai Armando Prazeres era português e o filho resolveu transformar aquele local numa zona de paz e cultura. Começaram com 16 crianças e agora já têm mais de 4.200. Mostraram um projecto coeso e muito interessante à volta de obras de música ligeira, moderna e alguns êxitos. São artistas frequentes no Rock in Rio (2019), Anitta e programas da TV Globo, entre outros festivais semelhantes.
Ao quinto dia deu Raia
De manhã, estivemos numa das sessões do Maré, mesmo ao lado das suas instalações ainda em obras. A sessão foi sobre golfinhos, baleias e tartarugas e o trabalho de resgate quando estes animais dão à costa. Qual a diferença entre os dois primeiros? O golfinho tem apenas um orifício para a saída e entrada do ar e a baleia tem dois. Vimos os dentes, os ossos da parte da frente de um golfinho e no fim o de uma baleia que é, por comparação, pode ser umas 20 vezes maior. Fazem a monitorização do porto e da praia de Sines, parte do litoral quando há arrojamentos que dão à costa, ainda dão apoio a mergulhadores que estudam os fundos muito cuidadosamente. Sobre o fundo de Sines, disseram que não é assim tão diferente de outros fundos de portos de mar com tráfego e embarcações. A água parece-nos bastante limpa. Testemunhos oculares dizem-nos que em tempos era muito melhor. Há mais de 40 anos, por exemplo. A partir de S. Torpes para o sul, é proibido pescar. Para o norte, não há problema.
Antes do espectáculo Raia, estiveram os Estupendo Inuendo na rua com «Ele Tem tudo e Eu não tenho nada». A criançada ficou maravilhada por este duo de cómicos. Um tentava tocar e o outro vestido de mestre de cerimónias boicotava-o de forma muito engraçada. Acabou com um improviso. No dia mais incrível aconteceu que ia desfiando uma história que dependia do outro dizer sim ou não para mudar completamente o seu curso. Um bom exercício de imaginação.
O belíssimo som da viola campaniça foi apresentado no Pátio das Artes com António Bexiga, que iniciou o projecto RAIA em 2019. A mistura com instrumentos electrónicos acaba numa simbiose muito interessante. Apresentou-se a solo, desenvolve um trabalho onde a voz e os instrumentos acompanham parte de um todo entre o experimental e o tradicional. Tradicional só o som dos instrumentos porque todo o resto é de uma enorme contenção. Excelente a todos os níveis a sua interacção com as gaivotas, os pássaros, a mãe terra. Saca sons incríveis das 10 cordas das violas, com alguns efeitos e loops. O António obtém resultados muito melodiosos. Vale a pena rever.
A Garota Não, ou o projecto da Cátia Mazari Oliveira mostrou-se no Castelo. São músicas e canções com uma poética autosustentável. A depressão de Setúbal faz-se sentir nos pormenores sonoros. Sérgio Mendes na Guitarra e Diogo Sousa na bateria e percussão conseguiram ambiências muito especiais, que vão da introspecção à crítica mordaz da sociedade contemporânea. O seu elogio ao patrocínio da Galp ao festival e os 422 milhões de lucros num só semestre (apesar de ser esta a média de lucros da Galp) deram o mote a uma canção. O seu foco é a música de intervenção com muito humor e ironia. Já tem dois álbuns lançados: «Rua das Marimbas, n.º 7» e «2 de Abril».
http://www.agarotanao.pt
Seguimos para Carminho, esta fadista não precisa de apresentações. O seu trabalho motiva uma mais valia, tanto pela voz como pelos arranjos musicais. Foi extremamente didáctica explicando a forma como adapta as suas canções ao fado. «O fado sou eu». Ponto. O menino vai à fonte, tem cuidado não partas a cantarinha. Não foi bem assim, mas quase. Entre marchas, corridinhos e canções de embalar, Carminho mostrou encantos vocais e um set muito bem escolhido, com músicos bem rodados nestas andanças. André Dias na guitarra portuguesa, Flávio Cardoso na viola de fado, Tiago Maia no baixo acústico, Pedro Geraldes na guitarra eléctrica e Lapsteel e, por último, João Pimenta Gomes no Mellotron.
Pouco depois, foi a vez de Lila Downs do México. Lila Downs é um caso especial. Uma deusa em ponto grande. O México aparece todo retratado pelos índios, a cultura da morte e o mescal, a sua bebida favorita. Detentora de seis Grammys latinos e um global, tem um portento de voz e dose de felicidade bem forte. É capaz de não deixar ninguém indiferente pelas suas orquestrações, defesa das tradições e do papel importante da infância e juventude no seu trabalho. Um México multicolorido cheio de máscaras, diabos e bufos feitos arlequins. Memorável. Filha de mixteco indígena da parte da mãe e escocesa americana por parte do pai. Músicos de excelência.
Penúltima artista da noite no Castelo, Rokia Koné do Mali. Outra senhora que não deita cartas por mãos alheias. Uma sonoridade quente, forte e batida. Teclados, guitarra e duas cantoras de coro suportam o espectáculo de grande mérito. Forte, o Mali apresentou-se numa linguagem contemporânea que vai às raízes africanas mais profundas
Cimafunk iria encerrar a noite no castelo com chave de platina. Falamos de uma banda cubana, com tudo o que a tradição tem de bom. Karamelo lo tengo regalado, do melhor do funk e dos Cima(rrones) que lutaram contra a escravidão. Kuando se come no se habla. Novas sonoridades num mix de funk, afrobeat e hiphop. Duas mulheres nos sopros: no trompete Ilarivis Garcia Despaigne e no saxofone Katerin Ferrer Llerena. Elas são figuras centrais na animação do espectáculo, além do vocalista Erik Iglesias Rodríguez, o Cimafunk. De resto, na bateria estava Raul Zapata Suri, no piano Arthur Luis Alvarez. No baixo Ibanez Hermida Marrero, nas percussões Mario Gabriel Mesa Meriño e nas percussões menores Miguel Enrique Villavivencio.
A noite iria continuar agora na avenida junto à baía. Tínhamos duas bandas. Uma a começar às 2:15 e outra para as 3:30. O festival ia deixar as suas marcas. Brushy One String da Jamaica e Kin´gongolo Kiniata da República Democrática do Congo. Ouvir reggae com um músico que toca uma guitarra com uma só corda parecia louco. Mas a noite estava ganha. They do it. We should do it. Uma voz forte e a sua guitarra de uma corda só conseguem preencher um palco rastafari. Andrew Chin nasceu em Ocho Rios, filho de um famoso cantor jamaicano Freddy McKay, torna-se famoso quando a canção que compôs para um filme se tornou num êxito mundial: «Chicken in the corn». Apareceu com um fato brilhante dourado. No dia seguinte de manhã, explicou às crianças que quando se é uma estrela tem de se parecer como tal. A inspiração apareceu-lhe num sonho, criar um espectáculo com uma guitarra só e uma corda Mi. Na realidade, aproveita para usar a caixa da guitarra como percussão, as notas de baixo e uma voz que obtém modulações fabulosas.
Kin´gongolo Kiniata vêm de uma Kinshasa pobre onde cada um tem de inventar os seus próprios instrumentos. Jazz afro pujante com sonoridades bem diferentes. Ninguém consegue ficar indiferente ao ritmo fabuloso em que as frases aparecem. Kinhata, Kongolo, kinhata, kinhata. Os instrumentos são adaptados do lixo. Um televisor serve de bombo da bateria, os sintetizadores são embalagens de spray, pequenas panelas e um set completo de garrafões de plástico. Muita House, pastilha e hipnose colectiva. Guitarras com só uma corda e vozes. A única electrónica são os microfones. Estes cinco músicos mantêm uma noite especial e memorável até cerca das 5 e meia da manhã.
Dia 6
O Festival começava a mostrar as suas garras. A noite anterior fora devastadora para os mais fracos da 4.ª idade. Muitos nem se aguentaram em pé e ficaram a dormir pelos jardins e valetas até o sol vir lhes bater nas sobrancelhas. Os carros de lavagem da câmara foram avisados antes. Senão a maioria estaria agora a secar as roupas cheias de areia na praia. Para começar, tínhamos a Rita Braga no Pátio das Artes às 16:30. O programa no seu total envolvia mais de 13 horas de música, fora as actividades paralelas. Destas cumpre destacar as sessões realizadas na praia onde ensinam as crianças a perceber os vários elementos marinhos. A vida marinha é fascinante vista desta forma. Assisti a três sessões se bem que um pouco azambuado na das 10 da manhã. Oceanógrafos mostram-nos os cuidados a ter e o papel de cada espécie no ecossistema marinho. Na sessão do Percebes ou não percebes? aprendemos sobre o habitat destas espécies marinhas, os Pollicipes pollicipes. Porque são tão procurados e chegam a valer fortunas nos restaurantes da especialidade (200 a 300 euros por quilo em certos restaurantes de Madrid ou Barcelona). É um projeto bLueTIDE, financiado por EEA Grants e o ponto de encontro foi no Laboratório de Ciências do Mar da Universidade de Évora na Avenida Vasco da Gama. A professora Teresa Cruz da Universidade de Évora, investigadora, abriu e mostrou a constituição de um crustáceo hermafrodita com pedúnculo que às vezes usa uma esfera para andar onde fora outrora a sua cabeça de um só olho. https://www.ciemar.uevora.pt
O Pátio das Artes abriu as hostilidades com Rita Braga numa mistura de samplers com cavaquinho e voz. São ambiências meio místicas no conceito vanguardista do termo. Minimalista na sua assumpção, encanta e resiste ao passar do tempo. De uma beleza intocável. Melancólica e com um humor próprio como em «Sardine». O cavaquinho vulgo ukulele já não será a mesma coisa debaixo da lua. Canta em dez línguas diferentes, indiano, finlandês e outras tantas pouco conhecidas.
Daqui passámos ao Castelo para ver Rita Vian. É a estreia de uma cantora que não anda muito longe do intimismo do fado e da movida urbana da música. Editou alguns EP’s, apresenta um trabalho sólido. «Sereia», «Purga» e «Caos» são os seus últimos trabalhos. Apresentou-os acompanhada de João Pimenta Gomes nos loops e teclados.
Um pouco mais tarde, foi a vez dos Gilsons abrirem a noite. São oriundos do Brasil. Começaram em 2019. Trazem uma música leve e alegre com raízes bem alicerçadas. Uma óptima escolha para estar num restaurante à beira bar a comer um peixe grelhado. 6 músicos, dois baixos, trompete, teclados, percussão e guitarra. Boa escolha, boa cepa. Com uma assistência fiel e conhecedora das qualidades da banda.
Marrocos, Yousra Mansour, Brice Bottin, Brahim Terkemani, Mehdi Yachou. respectivamente a tocarem guembri, guitarra e coros, bateria e sampler, flauta e percussões. Uma receita exótica? Uma mistura tradicional contemporânea ao gosto das vanguardas? A expressão de um povo tradicional e das tradições Gnawa e Hassani. Havia quem dançasse como os sufis até cair ou subir aos céus. Os Bab L´Bluz, Portal para o Blues, têm um conceito muito alargado onde cabe uma cultura florescente. Vivem entre Marrocos e a França, nasceram em 2018. Pode-se considerar um rock psicadélico com uma boa dose electrónica. Yousra Mansour levou-nos por paisagens com o seu guembri a tiracolo. Um guitarra com três cordas de pele de cabra, formada sobre o comprido com pele de camelo na parte da frente. Género um banjo mas em madeira.
De seguida, de ali tão perto vieram os Tinariwen do Mali. São tuaregues, daqueles que andam em camelos e têm cimitarras. Cantam canções de luta no dialecto tamashek, os seus álbuns têm sido nomeados para Grammys e popularizaram a música tuaregue em todo o mundo. O estilo assouf quer dizer nostalgia. Misturam os ritmos tradicionais com as vozes, seis guitarras, uma delas baixo e a percussão. Apresentaram o album «Amatssou», aí exploram sonoridades de origem americana com a sua música gravada em tempos de pandemia entre a Argélia, Nashville, LA e Paris. Muito forte e com enorme impacto devido ao vestuário que usam. Um tanto ou quanto em contradição com as guitarras modernas, a língua e o ritmo nevrálgico com que actuam.
Alright Mela meets Santoo é daquelas formações que ouvimos e ficamos de boca aberta a pensar: mas a vida é tão fácil de viver, porque complicam os humanos tanto? Bom, isso só se forem sufis do qawwali porque de outra forma a vida sempre foi complicada. É uma formação nova com o mais puro paquistanês e dois franceses, um nas teclas, Xavier Poucher e outro no oud eléctrico, Markus. O vocalista Shadzad Santoo Khan já tinha tocado em Sines, com os franceses, em 2018. Agora, depois da pandemia, fundaram um projecto mais ambicioso com Salamat Ali aka Chalou nas tablas e harmónio, Gohar Abib e Shahid Iqbal nos coros e palmas levam-nos a lugares inóspitos onde a mente abrange uma ínfima parte do nosso ser. Fantástico. A noite terminava assim no castelo e passávamos à Av. Vasco da Gama onde iriam estar em função duas bandas bem conhecidas dos portugueses.
Os África Negra de S. Tomé e Princípe e Alogte Oho & His Sounds of Joy. A primeira de S. Tomé e Príncipe e a outra do Gana. O som do funáná encheu a a avenida. Depois foi a vez da pantera cor de rosa. Veio devagar, em pézinhos de lã bem ensaiados. Uma música das altas esferas tropicais.
Alogte Oho apaixonou-se pela igreja e pelo gospel. Tenta fazer a fusão dessa música com as suas origens Frafra. O último álbum sintetiza todo esse trabalho que veio aqui apresentar a Sines. Um grupo composto por nove elementos.
O dia seguinte
O dia seguinte iria estar cheio de surpresas. Por um lado, sabíamos que as bandas grandes do cartaz tinha sido relegadas para o fim. As expectativas eram grandes e começavam em pleno com os Madalitso no Pátio das Artes. São dois músicos de rua que vão buscar aquilo que é mais popular nas ruas do Malawi e nos casamentos. Uma guitarra acústica que toca uma caixa com o pé e a voz de Yosefe Kalekeni. E um babatone com a voz de Youbu Malingwa. Já vão no segundo disco «Musakiyieke» que segue a «Wasalal» de 2017. Puseram o público ao rubro, de pé a dançar no pequeno espaço do pátio. 500 pessoas aos pulos, crianças, adultos e até cães. É um festival muito especial. Vê-se alegria na cara das pessoas. É natural, estão de férias, ouvem música, é só gente simpática à sua volta e um cartaz muito forte.
Tó Trips Trio. O Tó Trips já faz parte do folclore português da música de vanguarda urbana. Os Dead Combo, Club Makumba, Lulu Blind, Guitarra Macaca e agora Popular Jaguar. Nesta formação trio, acompanham-no Elena Espvall no violoncelo e António Quintino no contrabaixo. Não deixa de ser a Lisboa dos nossos corações, agora num registo mais clássico e intimista. Encantou como não podia deixar de ser. Passou pelos clássicos do seu reportório e o contrabaixo e o violoncelo deram um toque mais clássico à música tocada.
O palco durante o fim de tarde ainda sofre de algum calor provocado pelo sol e a iluminação só em parte surte algum efeito. A mestria de Tó Trips é inquestionável e de grande valor.
Tó Trips preparou bem a entrada para a Maria João e o Carlos Bica Quarteto. Estes passaram entre várias das músicas que Maria João tão bem sabe reinventar. Meio improvisado, mas bem ensaiado. Não deixou ninguém indiferente. Antes pelo contrário, uma forte adesão. Maria João estava muito bonita no seu vestido de cores garridas. A sua voz inigualável lá estava a atestar essas suas qualidades. Os outros músicos estiveram à altura.
Sentiu-se um clima perspassar pelo ar para a entrada de Rodrigo Cuevas. É um nome bem conhecido da música espanhola. Originário de Oviedo, põe em causa uma série de preconceitos como as identidades de género. Tem uma forma prazenteira e bem cosmopolita de o fazer. Na continuação do seu trabalho anterior «Trópico de Covadonga». Mistura corpos, sexo, machos e animais, o suficiente para um jardim zoológico transselvagem. Seja o que isso quer dizer, o objectivo é misturar a música tradicional com a música bem ritmada e dançável. De um humor acutilante. Coroou-se rainha de Portugal, e mandou defender, todos os dias, a liberdade pelo respeito ao mais antigos que tiveram o trabalho de a conquistar.
Um bocado no pólo oposto surgem da Jamaica Inna de Yard. Três músicos resolutos que mais parecem estrelas de cinema. Bom, eles não são 3, são 13! Música para o prazer de ouvir. Pura e simplesmente isso. “Humanity” é uma das suas músicas mais conhecidas. O espectáculo durou cerca de uma hora e foi do mais puro rastafari. Amor, mais amor com muito amor.
The Selecter do Reino Unido, é também uma big band. Foram o zénite da noite. Ninguém esperava tal energia numa mistura muito cuidada de som europeu com pontos afro-jamaicanos. O fulcro pioneiro do som Conventry two-tone. A banda é composta por sete elementos. Pauline Black na voz, Arthur «Gaps» Hendrickson na voz e Charley «Aitch» Bembridge são da formação original de há 43 anos. Uma banda que é uma lenda da música britânica deixou o público satisfeito.
Claro que a seguir nos esperava o Palco da Galp na avenida para o restante da noite.
Al Qasar feat Alsarah foi a surpresa esperada. Durante uma hora não pararam de distribuir grandes doses de música árabe misturada com electrónica. França, Arménia, Líbano, Turquia e Sudão juntaram-se para animar umas hostes bem divertidas. Alsarah é sudanesa, traz influências da antiga Núbia. Iggy Pop não conseguiu deixar de dar um rasgado elogio quando disse que o album «Who are we?» de 2022 era “That’s pretty bitchin!” Thomas Bellier no sax eléctrico, teclados e guitarras, Guillaume Teodon no baixo, Sacha Poulain na bateria e Sibel Durgut na voz. Quando assistimos a isto não conseguimos perceber o motivo de tantas guerras. Há mesmo uns senhores que manipulam os fios. A guerra seguinte também não seria menor.
Os Tabanka Djaz! A Guiné-Bissau tem produzido muito ouro e este está bem refinado. Os anos passam e nada nem ninguém os demove de fazerem boa música. Nascidos em 1980, lançaram diversos discos e têm tido digressões internacionais de grande sucesso. A noite não podia estar mais quente. Micas Cabral na voz e guitarra, Juvenal Cabral no baixo e coros e Jânio Barbosa no baixo, vieram acompanhados de sopros, teclas e bateria. João Barbosa nas teclas, Cau Paris na bateria, Kabum na percussão, Sheila Semedo nos coros e dança (até conseguiu fazer umas selfies em pleno espectáculo!). Como é deliciosamente bonita isso pouco importa. Trombone a cargo de Lars Arens, trompete com o Cláudio Silva e no saxofone Bernardo Tinoco.
Chegámos ao último dia
O último dia tinha deixado tudo em aberto. Iriam fechar com chave de ouro como já estão habituados a fazer? Sim, não podia deixar de ser. É uma tradição bem conseguida.
Bedouin Burguer no Pátio das Artes foram, quanto a mim, um dos melhores projectos apresentados. Se bem que todos eram de extrema qualidade. As vozes, a simplicidade e a dor que partilham vai ao fundo da alma . Um duo formado por Lynn Adib na voz e percussão e Zeid Hamdan em vários instrumentos e voz. O deserto aparece aqui transformado num local aprazível. Um local onde os sonhos andam escondidos, onde a humanidade se esqueceu de aparecer para aborrecer os mortais. Excelente esta música que se entranha sem estranhar e que apaixona à primeira audição. Mostra-nos muitos lados desconhecidos dentro de nós. Mapas por resolver que, aos poucos, vão sendo percebidos. Os sem abrigo, aqueles que não têm onde se guardar. A emigração, a questão palestiniana, tudo isso foi levantado no pequeno concerto que concederam. Até aventaram a hipótese de Portugal ser um bom porto de abrigo para eles. Toda a gente dançou de forma emocionante uma música que vai directa ao coração.
Quando os largámos para ver B Fachada só nos apetecia olhar para o mar infinitamente largo e poderoso. B Fachada é um dos nossos queridos pequenos génios. Todo o potencial está aí no ambiente que cria à sua volta. Usa a guitarra braguesa, a pianola e a voz para nos tornar mais compenetrados. Não nos podemos distrair. A música é uma linha de viragem, pela poesia e pelo ritmo das palavras proferidas. Pela crítica mordaz que ele distribui pelos lambe-cús (sic), uma das suas músicas preferidas. O castelo foi o espaço escolhido. Depois disso, restou-nos descansar umas horas para a fase final da noite.
De S. Paulo, Céu mostrou que não era assim tão desconhecida. As suas músicas ficam no ouvido, são alegres. O álbum novo foi forjado na pandemia. «Um gosto pelo Sol», é uma mistura de pagode, bossa nova, samba, escola mineira e pop brasileira. Um regresso 13 anos depois de aqui ter estado o que se revelou num sucesso estrondoso. Voz muito melodiosa, apresenta-se muito alegra e com o fato a condizer com malmequeres gigantes. Cinco elementos compõem a banda e dão uma cor ao trabalho que efectuou no palco.
Rapidamente, seguimos para Nneka da Nigéria. Um som flutuante, ao gosto das marés e das ondas. Uma senhora com um timbre de voz acima da média e uma banda de suporte de excelente qualidade. É uma artista multiexpressiva. As suas músicas são de contestação social e misturam vários estilos que vão do afro-beat, ao hiphop, reggae, soul e tradição da etnia Igbo de Warri. Fez uma prestação excelente para meio da noite. Deliciamo-nos com com as suas interpretações e o timbre de voz absolutamente natural que nos traz para dentro da música. Para mim, foi a melhor banda em palco. Tudo isso é muito relativo dada a qualidade e quantidade apresentada ao longo destes 9 dias de festival. O concerto estava esgotado desde o dia anterior. Havia quem procurasse bilhetes a mais. Sempre se consegue quando alguém desiste à última da hora. Para algumas pessoas, não estava a ser fácil.
Os Ghorwane preparavam o espectáculo para durar pela noite dentro. Vieram de Moçambique ao som da marrabenta e da muthimba. São conhecidos mundialmente. Peter Gabriel convidou-os para estarem no WOMAD. Em 1993, lançaram o álbum «Majurugenta» pela Real World Records. A banda era composta por 9 elementos, todos muito bem entrosados a tocarem harmonias bem elaboradas com um grupo rítmico de grande qualidade. Sobre isso, as melodias decorriam por apontamentos de solos dos sopros. Transmitiram um boa dose de energia e alegria, muito contemporâneos. Fazem 40 anos como Roberto Chitsonzo fez bem em lembrar. Estamos lá longe na África e queremos trazer um bocadinho do nosso país. Dancem, pulem à vontade, a vida é para usufruir em pleno. David Macuacua na voz, Inácio Nacy no trompete e nos coros, Joaquim na bateria, Dhibas na guitarra eléctrica, Tony Paco na percussão, Muzila no sax e voz, Antonio Baza no trompete e voz, Joni Schwalbach nos teclados e Carlos Gove na guitarra baixo.
A noite ia aquecendo e Os Tubarões iam fechar o certame no Castelo. Foram dias e noites inesquecíveis acompanhados pelos melhores músicos da World Music. Tínhamos a alma cheia.
Mas ainda faltavam umas horas para terminar. O epílogo seria na avenida principal ao som dos Super Mama Djombo e Bamba Wassoulou Groove.
Quanto aos primeiros, sabíamos que a sua carreira já era longa. Mama Djombo provém do nome de um espírito que protegia os guerrilheiros guineenses. Em 1979, gravam de uma assentada 79 músicas que vão servir para sucessivas edições discográficas. A banda tem sofrido várias mudanças, mas continua viva e recomenda-se. 14 elementos em palco, 4 guitarras, 6 vozes, 2 percussões e um baixo.
Os Bamba Wassoulou Groove são formados por 5 músicos, 2 guitarras, baixo, voz e bateria. A música de forte inspiração Bamako, a maior cidade e capital do Mali é um projecto que continua homenagear o seu fundador, bamba Dembelé. Percussionista de grandes qualidades criou a banda como forma de rejuvenescer a música do Mali. Considerado o berço do blues, o grupo imprime um rock pujante. A noite acabava assim e o festival prometia outras surpresas para o ano seguinte.
A organização
Da responsabilidade da Câmara Municipal de Sines na organização do Festival, tem a direcção artística de Carlos Seixas que acaba de receber o prémio IFA 2023 (Iberian Festival Awards) concedido pela Aporfest- a Associação dos Portuguesa dos Festivais de Música. A vinda de vários jornalistas estrangeiros, o convite aos embaixadores dos países representados, tudo isso serve para potenciar uma projecção maior do que aquela que normalmente seria de esperar de um festival que se quer internacional e, ao mesmo tempo, um cartão de visita para o turismo nacional no verão.
Aos jornalistas foi proporcionada toda a informação em formato impresso e numa caneta USB junto com uma pequena carteira de tecido muito útil e atrativa. O Gabinete de Imprensa em Sines disponibiliza duas salas amplas para trabalho e uma terceira com um pequeno catering onde se podem encontrar sandes, alguns bolos, pizzas, rissóis, bebidas frescas e café. Para um trabalho tão árduo, embora possa não parecer, faz toda a diferença.
Talvez duplicar as casas de banho seja uma boa sugestão dado que não foram suficientes para as necessidades do people que se deslocou tanto em Porto Covo como em Sines.
Segundo a organização os bilhetes esgotaram antes de sábado. Passaram 100.000pessoas, não se sabe bem quando e como. Entre Porto Covo e Sines, esta dividiu-se em 3 outras zonas. As entradas no castelo foram muito dificultadas pelas exigências de segurança que revistavam tudo e todos. Prometem ser mais céleres no ano que vem. Um resumo dos espectáculos pode ser visto em
Prometemos para o ano voltar e organizar tudo ainda de uma melhor forma. Ao mesmo tempo, foi um choque as muitas horas de música, a praia, o caminhar. Não estávamos habituados, mas só fez bem. Obrigado, Sines! Uma abraço a todos pela sua forma de receber e o à vontade em apoiar tanta gente jovem que os invade duas ou três vezes por ano. Para Setembro, está programado o Festival Artes da Rua nos dias 15 a 17 de Setembro.
Publicado na Revista online Incomunidade em 1 Agosto de 2023